
V Profesor Mario Maestri
História e Historiografia:
Da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]
Mário Maestri*
“En La guerra del Paraguay ha triunfado no solo la República Argentina sino también los grandes principios del libre cambio [...].Para el comercio se han derribado las fortalezas que amenazaban las costas [...]. Cuando nuestros guerreros vuelvan de su campaña, podrá el comercio ver inscrito en sus banderas victoriosas los grandes principios que los apóstoles del libre cambio han proclamado.”
Bartolomé Mitre [Arengas, 297].
I. A Instauração Historiográfica: Uma Historiografia de Trincheira
A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história do Brasil da segunda metade do século 19. Em um sentido lato, as ações militares iniciaram-se em 16 de outubro de 1864, com a intervenção armada do Império no Uruguai, contra o autonomismo blanco, exigida pelos criadores rio-grandenses instalados no norte daquele país, e concluíram-se, em 1º de março de 1870, com a morte de Solano López, em Cerro Corá, com o Paraguai já sob ocupação militar imperial.
Dos 150 mil brasileiros que teriam participado no confronto, talvez até cinqüenta mil morreram devido aos combates ou por doenças. Uns 0,5% dos dez milhões de habitantes do Brasil em 1872. Os gastos com o esforço militar comprometeram por mais de uma década as finanças brasileiras ainda que o país tenha recebido indenização de guerra até a Segunda Guerra e conquistado importantes territórios. Com talvez quatrocentos mil habitantes, o Paraguai teve sua população sobretudo masculina dizimada − os autores mais contidos falam de 15% a 20% de mortos. O país foi ocupado militarmente, amargou perdas territoriais significativas, arcou com indenizações de guerra, teve suas terras públicas privatizadas, foi obrigado a endividar-se internacionalmente, com seqüelas permanentes.
A guerra mostrou o anacronismo geral do Brasil escravista para enfrentar esforço militar modero, apesar da sua dimensão territorial e econômica. Durante o confronto, a luta abolicionista, o grande movimento nacional em gestação, foi imobilizada pela retórica da união diante do inimigo externo, retardando possivelmente a abolição da escravatura. Os partidos liberal e conservador apoiaram uma luta rejeitada pelas classes populares e subalternizadas, sem que qualquer força institucional se opusesse explicitamente a ela.
As forças armadas imperiais conheceram salto qualitativo e quantitativo com a Guerra, transitório sobretudo no relativo ao Exército, primeira confronto significativo contra forças armadas estrangeiras que ocuparam marginalmente o território do Brasil [Mato Grosso e Rio Grande do Sul]. Até então, o exército imperial havia participado apenas de combates internos e de operações intervencionistas no Plata. A guerra ensejou a gênese da idéia do Exército-oficialidade como encarnação da honra e dos destinos do país, proposta que se expressou fortemente nas artes plásticas e na historiografia.
Ao lado da Descoberta e da Independência, a Guerra do Paraguai foi objeto de representações patrióticas excelentes da pintura brasileiras de fins do século 19 e inícios do século 20. Pedro Américo [1843-1905] consagrou-se com a “Batalha de Campo Grande” [1871] e a “Batalha do Avaí” [1872-77]. Em 1972, a exposição do primeiro quadro na Corte recebeu sessenta mil visitantes. Victor Meirelles [1932-1903] consolidou-se com as encomendas pelo Estado imperial, em 1868, de “Combate Naval do Riachuelo” [1882-3] e “A passagem de Humaitá” [1886].
Historiografia de Trincheira
As primeiras obras brasileiras de cunho memorialista sobre a Grande Guerra Sul-Americana foram realizadas durante e imediatamente após o conflito. Trataram-se sobretudo de narrativas sobre o heroísmo e a abnegação das forças armadas nacionais em defesa do Brasil e da “civilização”, agredidos por “barbárie” corporificada no ditador paraguaio, responsabilizado exclusivamente pelo confronto. Comumente produto de ex-combatentes, essa produção registrou uma leitura dos fatos desde a trincheira brasileira.
Destaca-se nessas obras a célebre Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai, do jovem engenheiro-militar Alfredo de Escragnolle-Taunay [1843-1899], publicada em 1871, em francês, “por ordem do governo brasileiro”. Seu sucesso de público transformou os fatos narrados em legenda paradigmática do confronto. Ela narra a expedição que, enviada do litoral, no início da guerra, para abrir segunda frente no norte do Paraguai, invadiu em janeiro de 1867, com 1.600 homens e quatro peças de artilharia, pouco mais de vinte quilômetros do Paraguai, até a fazenda da Laguna, para empreender a seguir, por pouco mais de um mês, desastrada retirada, sobretudo em território mato-grossense, fustigada pelas frágeis tropas guaranis.
O relato desvela cenários em contradição com a retórica patriótico-militarista habitual nessa literatura: operação arriscada e mal planejada, decidida por oficiais sedentos de consagração; o medo, o suicídio, a indisciplina e a deserção; o abandono de combatentes doentes pelos soldados e pelo comando; o hábito das tropas imperiais do saque, que o próprio Taunay justificou em alguns casos – “Este saque, aliás, era legítimo [...].” Fora algumas referências depreciativas a Solano López, o livro registra comumente a admiração com a belicosidade, disciplina, engenhosidade e operosidade dos guaranis, vistos como excepcionais “campeiros”; “grandes mateiros”; ativos trabalhadores; soldados fiéis; coesos e disciplinados na luta.
A obra registra igualmente a cultura habitual dessa produção memorialista de defesa intransigente pela oficialidade da honra e dos brios do país feridos pela “agressão” paraguaia. Mesmo quando o autor critica oficiais da coluna, apresenta-os como abnegados patriotas – uma outra característica geral dessa primeira literatura sobre o confronto. Como habitual nessa produção, não há quase descrições dos soldados, que jamais nominados, a não ser no geral, como combatentes, como doentes, como desertores, etc.
Apesar da informação paradoxal fornecida sobre os fatos, A retirada da Laguna ensejou narrativas patrióticas apresentando a patética operação como feito bélico e humano superior aos mais heróicos atos militares universais. Em maio de 1952, no “Prefácio” à 13ª edição, o historiador Afonso de E. Taunay [1876-1958] refere-se às façanhas narradas pelo seu pai como um dos “mais elevados feitos dos anais militares das nações do Ocidente”. A obra prosseguiu e prossegue motivando estudos, pinturas, esculturas, monumentos, comendas, concursos, celebrações patrióticas, jogos educativos, etc., patrocinadas sobretudo pelo Exército e pelo Estado.
A narrativa memorialista sobre a guerra contra o Paraguai foi produzida em geral por oficiais e profissionais liberais que participaram da Guerra, sem grandes informações sobre suas razões profundas, sobre o Paraguai e sua sociedade e, não raro, sobre o próprio Império, uma entidade na época sobretudo política, devido à fortíssima regionalização do Império.
Historiografia Republicana
O golpe republicano de novembro de 1889 expressou os interesses dos grandes proprietários provinciais, desobrigados pela superação da escravatura, em maio de 1888, da sustentação do centralismo monárquico. Ele deu-se sob a égide da alta oficialidade do Exército, grande interessada na consolidação e radicalização das propostas das forças armadas como representantes dos interesses da nação, fortalecendo-se a seguir a historiografia nacional-patriótica sobre o grande confronto.
A proposta de identidade nacional republicana, elitista e autoritária, com as forças armadas como guardiãs dos interesses magnos da nação, apoiou-se fortemente nas narrativas nacional-patrióticas sobre a Guerra. A elevação dos oficiais monárquicos maiores que intervieram naquele conflito ao status de figuras luminares da nação republicana levou a que praticamente todos os patronos das diversas armas e corpos do Exército e da Marinha sejam oficiais enobrecidos pelo Império que se destacaram nos combates paraguaios.
O marechal-de-exército Lima e Silva, duque de Caxias, tornou-se o patrono do Exército; Manuel Luís Osório, marquês do Erval, da Cavalaria; marechal Emílio Mallet, barão de Itapevi, da Artilharia; Antônio Sampaio, comendador da Imperial Ordem da Rosa, da Infantaria; Joaquim Marques Lisboa, marques de Tamandaré, patrono da Marinha de Guerra. Apenas a Força Aérea Brasileira não se encontra tutelada por um alto oficial consagrado em 1864-1870, talvez porque os balões cativos então utilizados pertencerem ao Exército.
A historiografia republicana consolidou a instauração da narrativa nacional-patriótica construída através da seleção-organização das apologias do Estado e das classes dominantes imperiais sobre o conflito. Essa produção despreocupou-se com as razões e os cenários sociais e nacionais da Guerra, privilegiando a apresentação cronológico de confronto, definido, como assinalado, como choque entre a civilização e a barbárie, promovido pela agressão ao Brasil motivada por Solano López, que seguiu sendo apostrofado como “tirano”, “ditador”, “megalômano”. etc., ao igual que durante os combates. Uma retórica retomada diretamente dos momentos do confronto. Em abril de 1864, o jornal mitrista Nación Argentina propunha: “El Brasil representa la civilización y Paraguay la barbarie.”
Para corroborar a visão de embate essencialmente querido pelo ditador paraguaio, essa historiografia consolidou como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor mercante brasileiro Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, em águas paraguaias, sem declaração de guerra, e não a invasão pelo Império, um mês antes, do Uruguai, apoiado pela Argentina mitrista, fato anunciado pelo governo paraguaio anteriormente como casus belli, pois condicionava a saída ao mar do Paraguai à vontade do Império e da Argentina − oligarquia bonaerense −, nações com as quais possuía problemas de fronteiras, de navegação dos grandes rios e de autonomia nacional. Essa historiografia ignorou olimpicamente o fato de que o Império preparava-se para guerra com o Paraguai, se possível com o apoio e a participação do unitarismo argentino, que sequer reconhecia a independência paraguaia.
Em Invasão paraguaia na fronteira brasileira do Uruguai, escrito após a retomada de Uruguaiana, o cônego João Pedro Gay refere-se às razões da guerra: “O General Francisco Solano Lopez [...] vendo em meados de 1864 travar-se a luta entre o Império do Brasil e o Governo [...] do Uruguai, estremeceu [...], temendo que o Brasil, com quem não tinha contas justas, lha espedaçasse, derrubando seu governo despótico [...] logo que houvesse derrotado os blancos de Montevidéu, e em seu furor, resolveu ele declarar a guerra o Brasil.” Um reconhecimento mesmo condicional das razões gerais do confronto. Em 1944, comentando o livro, o historiador rio-grandense major Sousa Doca agregava candidamente que com “a intervenção do Brasil no Estado Oriental [...] nenhuma ameaça sofria o equilíbrio do Rio da Prata [...].”
Historiografia Paraguaia
A historiografia republicana brasileira propôs que a guerra fosse apenas contra Solano López, retomando a retórica justificativa do Tratado da Tríplice Aliança, que pactuou, no início do conflito, o fim da autonomia real paraguaia através da apropriação de parcelas dos seus territórios; de reparações de guerra; do desarmamento do país; da sua ocupação por cinco anos; da formação [contra o direito internacional] de Legião Paraguai; da internacionalização de sua navegação interna; da constituição de governo colaboracionista; de rendição incondicional, etc. Lançou a responsabilidade pela dizimação da população sobre o ditador e sobre o próprio povo, por segui-lo na aventura. Essa literatura encerra-se com a morte do ditador, em Cerro Corá, olvidando a aplicação impiedosa das condições do Tratado, que apontavam para as razões estruturais do conflito.
Comumente em forma obliqua, essa narrativa registrou quase perplexa a singular resistência paraguaia, paradoxo que jamais superou, devido à impossibilidade de explicar o imenso esforço bélico e as enormes baixas do Império para vergar uma nação de menor importância, em aliança com a Argentina mitrista e com o apoio simbólico dos colorados uruguaios de Venancio Flores [1808-1868]. Realidade em geral apresentada como produto da preparação militar paraguaia prévia e do fanatismo e desprezo pela vida, se não da selvageria, de população de origem guarani vista, até hoje, com menosprezo pelas classes médias e dominantes brasileiras.
A marcialidade paraguaia seguiu como enigma sem resolução. Ela dificultou que a guerra galvanizasse o imaginário popular brasileiro, que se manteve em geral infenso à retórica nacional-patriótica, alimentado por lembranças tênues das tristezas conhecidas pelos combatentes naquele conflito e pela população, devido a ele. Jamais foi escrita história da participação popular brasileira na Guerra, que continua sendo cultuada sobretudo pelo Estado e pelas forças armadas. Ultimamente, ensaia-se com dificuldade a construção de legenda da história regional do confronto e da participação popular no mesmo.
As interpretações nacional-patrióticas brasileiras sobre a Grande Guerra Sul-Americana de inspiração estatal prosseguiram plenamente hegemônicas até a década de 1970, sem questionamentos por parte da historiografia acadêmica ou extra-acadêmica nacional, desde 1964 sob o peso de ditadura militar. A própria literatura histórica inspirada pelo Partido Comunista Brasileiro, forte após a II Guerra Mundial, condicionada pelas suas visões nacional-populistas, pouca importância deu à Guerra, reforçando comumente a proposta da transformação do exército imperial em força nacional de tendência democrática durante aqueles sucessos, devido à captação de segmentos médios em seu oficialato.
Em História militar do Brasil, de 1965, o historiador e general Nélson Werneck Sodré [1911-1999], militante do PCB, propunha, referindo-se à uma inverossímil democratização racial das forças armadas imperiais durante o confronto no Paraguai: “Fora sempre frouxo, na tropa regular [o rótulo da pele], e a guerra [do Paraguai] o liquidou quase totalmente.” Porém, o autor ressalta a não alteração da “composição” da “oficialidade” e lembra que após o conflito os efetivos do Exército foram reduzidos drasticamente, chegando, quando da República, a um máximo de treze mil homens, sua dimensão antes daqueles combates.
II. O Revisionismo Historiográfico: Por uma História dos Povos
Em um sentido lato, o revisionismo historiográfico, como interpretação contraditória às explicações justificadoras do Império e da Argentina mitrista, é contemporâneo à própria guerra, expressando-se poderosamente sobretudo através de intelectuais argentinos federalistas, como Juan Bautista Alberdi [1810-1884] e José Hernández [1834-1886], que denunciaram o confronto como uma agressão do Império do Brasil e do Unitarismo portenho contra os direitos provinciais argentinos e contra a autonomia uruguaia e paraguaia. Em pleno confronto, Aberdi propunha: “Paraguay representa la civilización, pues pelea por la libertad de los ríos contra las tradiciones del monopolio colonial; por la emancipación de los países mediterráneos; por el noble principio de las nacionalidades; por el equilibrio, no sólo del Plata, sino de toda la América del Sur.” Essa narrativa revisionista sobre a Guerra muito pouca repercussão teve no Brasil.
Apoiado também nessa leitura do conflito, o revisionismo sobre a Grande Guerra Sul-Americana tomou igualmente pé no Paraguai. A reorganização liberal do país sob ocupação militar do Brasil promoveu a extensão-adaptação das interpretações imperiais pelas primeiras narrativas paraguaias, com enorme ênfase na responsabilidade pelo conflito de Solano López, decretado “traidor a la patria” pelo governo colaboracionista, em agosto de 1869, antes mesmo de sua morte. Desde início do século passado, revisionismo histórico, impulsionado inicialmente sobretudo por Juan E. O´ Leary [1879-1969], sob a oposição governamental, empreendeu resgate do conflito desde ótica nacional paraguaia, que destacou o heroísmo do soldado guarani e de Solano López, elevado à posição de herói nacional.
Condicionado pela época e realidade do país, o lopismo alcançou enorme repercussão, ao interpretar contradições profundas sobretudo dos sentimentos dos segmentos populares paraguaios com as narrativas oficiais dos vencedores e das classes liberais do país sobre a Guerra Grande. É violência analítica apresentar esse movimento, de complexidade e dimensão social, como mero produto de mega-operação imobiliária empreendida pelos herdeiros de Solano López. Ou deslegitimá-lo devido a sua utilização política pelo Partido Colorado e à elevação à ideologia oficial, sobretudo por Alfredo Stroessner [1954-98], falecido no exílio, no Brasil, em 2006.
O revisionismo paraguaio, de fortes vertentes patrióticas, propôs que a guerra, desejada pela Inglaterra, destruíra um país, antes da guerra, forte e feliz. Nesse sentido, em 20 de novembro de 1932, no artigo “El Paraguay, lo que fue, lo que es y lo que será”, Manuel Domínguez (1868-1935), propunha que, quando dos López, “no había una sola familia sin hogar [...]. En instrucción [...] se adelantó a Europa y a América [...]. Era el único país sudamericano que no estaba en bancarrota, el único de moneda sana [...] ninguna nación americana le igualó en producción”. Destaque-se que após a guerra, sob governos paraguaios liberais e ditatoriais, as terras públicas foram privatizadas e transformadas em geral em latifúndios, comumente de propriedade de estrangeiros, em boa parte argentinos, desorganizando profundamente um campesinato já dizimado pelos combates. Essa produção revisionista foi praticamente desconhecida pela historiografia brasileira.
Desde os anos 1950, no contexto de fenômenos mundiais essenciais como o fortalecimento do movimento de libertação nacional na Ásia e na África; as revoluções argelina, vietnamita e cubana; o fim da hegemonia stalinistas nas ciências sociais marxistas; as jornadas mundiais de 1968, etc., novas leituras revisionistas procuraram superar as narrativas patrióticas das classes dominantes nacionais sobre a Grande Guerra Sul-Americana, desvelando suas causas essenciais partir de ótica das classes subalternizadas, na construção de uma história unitária dos povos americanos.
Nesses anos, destaca-se sobretudo o revisionismo historiográfico argentino sobre a Grande Guerra Sul-Americana, como os ensaios de Enrique Rivera, José Hernández y la Guerra del Paraguay, de 1954, e de Milciades Peña, La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia, de 1955-7, de corte marxista, e os artigos de inspiração revisionista, americanistas e antiimperialistas de José Maria Rosa [1906-1991], de 1958-1959, reunidos no livro La guerra del Paraguay y las Montoneras Argentina, de 1964. Em geral, esses autores aprofunaram e radicalizaram as interpretações federalistas, em estudos de grande complexidade. Milciades Peña, por exemplo, refutou totalmente a explicação da guerra como iniciativa inglesa, responsabilizando por ela plenamente o Império e a oligarquia porteña. “Ni la monarquia coronada brasileña ni la oligarquia mitrista hicieron la guerra del Paraguay por encoargo de Inglaterra, aunque al terminar la guerra el principal beneficiario de la destrucción del Paraguay y la miseria de sus vencedores fue el capital londinense.”
Essa produção, que se apoiou no revisionismo paraguaio e teve forte repercussão naquele país, passou igualmente quase totalmente despercebida no Brasil, devido aos frágeis laços culturais entre as duas nações e ao Golpe Militar de 1964, que desorganizou a intelectualidade progressista brasileira e tornou aquele confronto tema tabu, devido à sua importância para a ideologia oficial e para as Forças Armadas. Em verdade, até mesmo os escritos clássicos de Juan Bautista Alberdi [1810-1884], da época do confronto, eram de difícil acesso ao grande público e são ainda pouco conhecidos no Brasil.
O livro Il Napoleone del Plata, do jornalista Manlio Cancogni e do historiador Ivan Boris, publicado, em 1970, na Itália, e traduzido, em 1975, pela Civilização Brasileira, tradicional casa editorial de esquerda, primeiro estudo revisionista de larga divulgação no Brasil, integrou à explicação do confronto o estudo da história do Paraguai, destacando a orientação autárquica e anti-oligárquica de José Gaspar Rodriguez de Francia y Velasco [1766-1840] para assegurar a independência paraguaia questionada pela oligarquia comercial de Buenos Aires, política que teria favorecido o campesinato de origem guarani. Sobre o sentido dessa autonomia, Alberdi propusera: “El aislamiento del Paraguay [...] es simple resistencia a la política de aislamiento y colonial de Buenos Aires [...].”
Uma orientação autonomista inicial em processo de superação tendencial no longo governo de Carlos Antonio López [1970-1962], que abriu relativamente o país ao exterior e ao capital mercantil, sem romper os laços sociais com o campesinato, política seguida no geral por seu primogênito, Francisco Solano López [1827-1870]. Apoiados em uma escassa informação sobre as raízes guaranis do Paraguai, os autores destacam a importância das missões jesuíticas e, a seguir, das “fazendas estatais” na formação daquela nação.
O estudo maximisa o desenvolvimento conhecido pelo Paraguai, a partir da propriedade pública de grande parte das terras do país, arrendadas aos camponeses, e do monopólio do comercio exterior, que ensejou a indiscutível modernização relativa da nação, apesar da sua relativa pobreza – fundição, ferrovia, telégrafo, ensino público, etc. Apresenta leitura inovadora ao público brasileiro: narrativa cronológica dos combates desde ótica simpática aos paraguaios; sugestão do país como Estado-nação em consolidação, de sólidas raízes guarani-camponesas; esboço de análise desde as estruturas sociais paraguaias; uma mais equilibrada apresentação de Francisco Solano López, mesmo sendo o livro claramente antipático a ele, etc.
Apesar do seu caráter inovador e qualidade literária, a publicação italiana teve limitada repercussão no Brasil, conhecendo apenas uma edição, segundo parece devido à proibição de reedição pela ditadura. Na orelha do livro, o editor Enio Silveira [1925-1986] apresentou em forma apologética Solano López como “verdadeiro condutor de povos, chefe militar de grande brilho e coragem incomum”, “patriota paraguaio”, “político em busca de efetiva independência nacional e contrário às oligarquias postas a serviço do imperialismo britânico então dominante”. Realizava radicalização e modernização da ação do presidente como liderança nacionalista e americanista estranha ao proposto na obra que lançava.
Revisionismo no Brasil
Em 1968, León Pomer lançara na Argentina La guerra del Paraguay: gran negócio!, publicado no Brasil sob o título A Guerra do Paraguai: a grande tragédia rioplatense, anos depois, em 1979. O livro se despreocupava dos confrontos bélicos, empreendendo ampla análise das razões políticas, diplomáticas e econômicas da Guerra, destacando as contradições entre o caráter autárquico e autônomo do Paraguai e as necessidades de penetração do imperialismo no Plata, através das ações dos governos da Argentina e do Império do Brasil. Para o historiador, a Inglaterra seria a “grande beneficiária da guerra”. O livro conheceria uma segunda edição em 1980 e o autor publicaria, a seguir, um outro breve ensaio sobre o tema, Paraguai: nossa guerra contra esse soldado. Esse seria praticamente o único livro conhecido no Brasil da significativa publicística argentina sobre a guerra.
Em março de 1979, com Genocídio americano: a Guerra do Paraguai, o jornalista Júlio José Chiavenatto, retomando algumas das teses revisionistas, superava as apresentações factuais nacional-patrióticas dos combates com ampla discussão das razões do confronto, apresentado como agressão do governo brasileiro e argentino contra a nação e o povo paraguaio, em vez de produto da vontade de líder desvairado.
Lançado dias após a posse do último general-ditador, o estudo conheceu enorme consagração, esgotando-se a primeira edição em uma semana e quatro outras em três meses, sem qualquer referência na imprensa. O livro teve 32 edições na prestigiosa editora Brasiliense, fundada por Caio Prado Júnior [1907-1990], e sete, na Editora Moderna, conhecendo tradução ao espanhol e edições piratas no México e no Paraguai [em guarani].
Com talvez mais de cento e cinqüenta mil exemplares vendidos, o livro tornou-se referência da historiografia brasileira, pautando os futuros estudos sobre a Grande Guerra Sul-Americana. A redação para o grande público, sem notas de roda-pé, em linguagem jornalística erudita, facilitou o enorme acolhimento, determinado sobretudo pelo momento da publicação, que condicionou a própria feitura do trabalho, quanto à forma, linguagem e conteúdo.
As seqüelas da crise mundial de meados de 1970 embalavam a retomada das mobilizações sindicais e democráticas, trincando a hegemonia construída pela ditadura apoiada no “Milagre Econômico” e na repressão. Sob os golpes da depressão salarial e dos investimentos, a população enfarava-se da retórica da ordem militar da qual entrevia os interesses que representava.
Chiavenatto desconstruía a grande narrativa militar-patriótica da história do Brasil, em 1979, ano em que a retomada das lutas sindicais alcançou o apogeu, colocando o mundo do trabalho como referência por mais de uma década no Brasil. A volta das lutas sociais brasileiras levaria a seguir à fundação do PT e da CUT, então anticapitalistas e classistas.
Produção e Recepção
A nova realidade político-social exigia representações do passado interpretando as necessidades dos trabalhadores e criava condições para a sua recepção. Em 1978, Jacob Gorender, ex-preso político e ex-militante do PCB e do PCBR, publicara O escravismo colonial, estudo erudito sobre a escravidão, que galvanizou o mundo acadêmico ao superar o impasse em terno das origens capitalistas ou semi-feudais do Brasil. O livro conheceu uma segunda edição em 1978.
Não dispomos de análises das fontes, produção, recepção, epistemologia, etc. de Genocídio americano, que o autor apresenta nas páginas iniciais do trabalho como “reportagem, escrita com paixão” e não como obra historiográfica, produto do esforço de historiador de profissão. Teceremos algumas considerações sobre a obra apenas para enquadrá-la na presente apresentação.
Quase constrange assinalar a deslegitimação e liquidação a que o estudo foi objeto, a partir de crítica sumária das suas insuficiências, no contexto da ignorância do sentido de obra quase parida por necessidade histórica que transformou o jornalista em historiador autodidata, a partir do nível de conhecimento sobre a guerra no Brasil. Os críticos extremados jamais se perguntaram por que a historiografia acadêmica não pariu leitura semelhante ou superior. Ou sobre as razões da necessidade de quase 25 anos para a produção de questionamento essencial daquele ensaio, através de apresentação geral do confronto.
Ter nascido fora de Academia então emasculada pelas derrotas sociais de 1964 e 1969-1970 e por quinze anos de ditadura ajuda a compreender as grandes qualidades e as enormes limitações dessa obra, nascidas as últimas sobretudo da absolutização-simplificação de tendências que se materializam através de complexas mediações e da ênfase desmedida de fenômenos e processos históricos.
A mais célebre expressão da primeira tendência é a defesa da guerra como resultado direto das necessidades do imperialismo, em oposição à interpretação marxista argentina, dos anos 1950, como assinalado. Essa tese transformava os governos do Império do Brasil e da Argentina mitrista em meras marionetes inglesas. Aqueles governos teriam feito a guerra “por um só motivo: defender os interesses econômicos da metrópole-mãe [...].” Super-determinação imperialista que resta qualquer importância aos processos endógenos das nações periféricas.
Inocência Imperialista
A vontade das classes hegemônicas do Império e do mitrismo, representante da oligarquia portenha, essencial no conflito, foi potenciada, ao confluir com o interesse inglês de imposição do liberalismo na região. Em Cartas dos campos de batalha do Paraguai, o diplomata britânico sir Richard F. Burton [1821-1890] registrou a visão da grande potência da guerra: “Minhas simpatias vão para o Brasil, pelo menos enquanto sua ‘missão’ for desaferrolhar [...] o grande Mississipi do Sul.”
A crítica da radicalização de Chiavenatto da guerra como exigência dos interesses ingleses serviu para que o imperialismo britânico e os interesses livre-cambistas fossem em forma ainda mais arbitrária absolvidos de toda responsabilidade no confronto, em movimento de conteúdo político-ideológico que chegou a propor a impugnação da própria categoria “imperialismo”.
No livro, são recorrentes as radicalizações-absolutizações enfáticas, de fenômenos em geral objetivos e com referências documentais: autarquia inicial absoluta do Paraguai; país moderno, de população totalmente alfabetizada e avançada siderurgia, ferrovias, telégrafos, etc. São comuns extrapolações de fenômenos: “arianização” do Brasil com o arrolamento de afro-descendêndentes; um branco para cada 45 soldados negros, o que levaria a que só uns três mil brasileiros europeus tivessem lutado no Paraguai; soldados paraguaios sobretudo euro-descendentes [“cinco brancos para um mestiço ou negro”], apesar da base guarani daquelas tropas.
É também comum a utilização de categorias contemporâneas na descrição de fenômenos do passado, tais como “nacionalismo”, “consciência nacional”, “indústria de base”, “parque industrial”, etc., para facilitar a compreensão e promover reflexão sobre a realidade da época da publicação do trabalho. Esses anacronismos reforçaram a tendência à extrapolação das realidades analisadas.
Tais pecadilhos não anulam as importantes superações sugeridas: razões materiais da guerra; importância da intervenção no Uruguai, também como agressão à autonomia paraguaia; discussão da formação social paraguaia; dificuldades estruturais do Império escravista de livrar guerra nacional; derrota objetiva dos povos envolvidos no conflito; privatização das terras públicas paraguaias; satelitização do Paraguai; crítica à diabolização de López; avaliação histórica dos atos de guerra, etc.
Um Balanço Necessário
Genocídio americano foi o primeiro trabalho historiográfico brasileiro a realizar crítica geral desde a ótica das populações envolvidas no confronto, desorganizando as representações hegemônicas. Por além das questões assinaladas, conformou o imaginário histórico brasileiro porque galvanizou a difusa memória popular do rosário de horrores que fora aquela guerra, semi-soterrada pelo discurso nacional-patriótico.
A obra exigia superação [hegeliana], através de sua crítica sistemática, a ser realizada em grande parte através da simples recuperação de produção já pré-existentes, com destaque para a historiografia argentina, processo que jamais ocorreu, devido à dissolução das condições históricas que geraram o movimento revisionista. O autor seria objeto de enorme campanha de deslegitimação, por parte de intelectuais orgânicos do Estado, da grande mídia, da Acadêmica, etc. hoje concluída, realizada sobretudo através de negação de suas negações que ensejou verdadeiro restauro das narrativas nacional-patrióticas.
Praticamente trinta anos após sua edição, nos encontramos terçando armas em torno de Genocídio americano, o que já registra sua importância histórica. Mesmo assim, gostaria de aproveitar a oportunidade para registrar a homenagem a esse intelectual que enfrentou, como os combatentes paraguaios, com as armas e condições que dispunha, em forma destemerosa, combate historiográfico e ideológico crescentemente desigual e difícil com as bem apetrechadas forças auxiliares do Estado brasileiro.
III. A Restauração Historiográfica: Retorno às Trincheiras
O impulso do mundo do trabalho dos anos 1960 refluiu nos anos 1970 e foi batido em fins de 1980 pela maré contra-revolucionária mundial que consagrou a hegemonia mundial da produção capitalista, hoje em franca crise econômica. Esse movimento promoveu fortíssimo recuo das representações ideológico-culturais que procuravam interpretar o passado desde a ótica do mundo social.
No campo historiográfico, decretou-se a impossibilidade de interpretação do passado, e portanto, o fim da história como ciência, substituída pelo relato da "vida privada", do "imaginário", do "singular", do "exótico", etc. Os defensores de esforços analítico-interpretativos do passado para a transformação do presente tiveram suas trincheiras plenamente assaltadas.
A rejeição das "narrativas totalizantes" valorizou as novas histórias política e cultural, em restauração das velhas interpretações idealistas do passado, com destaque para a narrativa política factual. A história voltou a ser lida como produto da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais, como produto de determinações ideológico-culturais.
Esse processo de restauro foi geral à historiografia, destacando-se no Brasil no que se refere à escravidão colonial, onde se impôs impugnação e deslegitimação geral dos avanços obtidos com a definição da estrutura escravista colonial brasileira e a compreensão da oposição entre escravizadores e escravizados como luta de classes.
Quanto à guerra contra o Paraguai, movimento historiográfico restauracionista apoiado pelas forças sociais triunfantes e impulsionado pela mídia, desqualificou igualmente o revisionismo anterior como mero produto de ideologia “autoritária”, “populista”, “socialista”, etc., centrando as impugnações nos lapsos factuais e interpretativos, potenciados ao absurdo, sobretudo da obra de Chiavenatto, e ignorando os avanços obtidos, como assinalado.
Definimos esse processo de restauracionista pois, mesmo quando apoiado em recursos metodológicos refinados e ampla informação, posta à sua disposição em forma abundante, não conseguiu superar essencialmente a modernização, atualização e refinamento das narrativas inspiradas nas visões de mondo das classes dominantes das épocas dos sucessos, ancestrais sociológicas dos segmentos hoje dominantes, devido à dependência ideológica e epistemológica a esses últimos.
Historiografia de Transição
Dois anos após a “Queda do Muro de Berlim”, Ricardo Salles publicou A Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército, refinado trabalho de inspiração marxista, de sentido transicional, que, apoiado em avanços e temas revisionistas, desembocou na recuperação da tese do caráter progressista do Exército surgido no confronto. Esse estudo, que apenas avançou sugestões sobre a sociedade paraguaia, empreendeu refinada definição do caráter escravista do Brasil, apoiado nos avanços assinalados das ciências sociais marxistas.
Salles critica a ignorância dos interesses singulares do “Estado imperial brasileiro”, representante de classes escravistas que confrontaram o ataque britânico ao tráfico internacional, e assinala a vontade inglesa de obstaculizar “potência regional hegemônica” no Plata, fosse o Brasil ou a Argentina. Visão que não lhe impede de retomar no geral a tese de León Pomer da determinação do confronto pela “expansão do capitalismo da época, especialmente do capitalismo britânico na região platina”.
Impugna a definição do Paraguai como “nação independente do imperialismo” e igualitária, ressaltando sua diversidade em relação aos “vizinhos, em especial do Brasil escravista”. Assinala a incapacidade da elite crioula paraguaia de se impor quando da Independência e o dinamismo da “comunidade guarani”, que propõe em dissolução tendencial durante os governos dos presidentes perpétuos. No geral, aponta – no mesmo momento que elide – o necessário estudo da sociedade paraguaia para a compreensão dos sucessos.
Sua grande contribuição é a ênfase do caráter escravista do Estado brasileiro que, em momento de grande estabilidade, na luta pela hegemonia no Prata, necessária para a sua afirmação no Brasil e na América do Sul, não deixou espaço ao Paraguai que a solução militar, empreendida por Solano López, em grande parte devido à superestimação relativa das contradições internas da Confederação Argentina, do apoio do governo uruguaio blanco e da fragilidade interna do Estado escravista brasileiro.
Destaque-se que os blancos uruguaios e o governo paraguaio esperavam a sublevação dos cativos do Brasil. Expectativa talvez superestimada, mas não fantasiosa, como comprovam a movimentação das escravarias do meridião rio-grandense, quando da invasão de Jaguarão pelos blancos, em janeiro de 1865, e o movimento insurrecional servil de Porto Alegre, em junho de 1968, com envolvimento de prisioneiros paraguaios. Não era também descabelada a esperança no apoio dos federalistas argentinos, como comprovam a deserção maciça da cavalaria entrerriana, as sublevações provinciais antimitristas e as violentas montoneras que convulsionaram o interior argentino durante a Guerra.
Ricardo Salles ressalta a fragilidade estrutural do Exército e da Guarda Nacional, milícia dos escravistas, capazes de enfrentar ameaças internas e confrontos do Plata com países sem “estrutura bélica centralizada”. A indefinição da sociedade paraguaia leva o autor a explicar a marcialidade guarani como devida a uma precoce e ampla militarização e à “centralização do poder”, em reflexão profundamente insuficiente e claramente circular.
Missão Civilizadora
Retomando propostas da historiografia nacional-populista, Salles defende que a necessidade de construir “exército profissional”, apoiado na “Guarda Nacional”, nos “corpos de polícia das provinciais” e na convocação dos “Voluntários da Pátria” levaria o governo imperial a empreender “esforço de recrutamento de dimensões nacionais”, fortalecendo oficialidade imbuída de missão moralizadora e civilizadora nacional, então expressão dos “anseios e aspirações de grupos sociais emergentes”.
Retomando as visões da conquista-cooptação dos dominados pelo consenso, propõe que o arrolamento popular-patriótico não foi “simples mentira para escamotear a coerção do recrutamento”, obtendo “sucesso e um grau satisfatório de aceitação”. Na defesa da tese da formação de exército nacional semi-consensual, em um sociedade escravista pré-nacional, minimiza o arrolamento dos libertos, sugerindo não ultrapassarem “10% do conjunto das tropas”, contra os 20% proposto por Robert Conrad. Uma questão que permanece ainda em aberto.
Com frágeis dados empíricos, escora sua proposta em reflexões lógicas e circulares, propondo que “mobilização” geral para criar a “nova instituição nacional” não poderia se apoiar no “uso maciço da população escrava”, pois isso “abalaria a própria essência do poder escravista”, motivando revolta servil ou inviabilizando a “ideologia do Voluntário da Pátria”. A coesão da ideologia do Voluntariado é tese a ser comprovada, e a guerra farroupilha registrou a capacidade dos escravistas em servir-se de cativos, talvez em maior número, na defesa de seus interesses.
Apesar da fragilidade das fontes, as múltiplas formas de arrolamento e de origens dos soldados [“recruta, voluntário, substituto ou liberto”; homens livres; africanos livres; cativos crioulos e africanos; libertos; aborígines; caboclos; estrangeiros, etc.] registram o caráter não-cidadão e não-nacional das tropas. Nos fatos, o Império recorreu aos cativos por não poder mobilizar homens livres suficientes, apoiado na retórica patriótica, na convocação coercitiva, na emulação material [soldo, gratificação, terra]. Salles reconhece que o eventual “ardor patriótico” inicial decresceu logo, levando a que “o grosso da tropa” fosse “organizado coercitivamente”.
Mesmo assinalando o estranhamento entre os oficiais combatentes e a tropa, termina concluindo: “A guerra mostrou a esses oficiais o lado podre da laranja; colocou-os em contato e proximidade com o soldado enquanto expressão do povo [sic].” Como dito, defende a constituição de “exército nacional profissional”, reformista, descontente com a “classe dominante” e “elites dirigentes do Império”, de oficialidade portadora de “sementes de inquietação e questionamento social”.
Exército Cidadão
Um novo exército que – formado com “conceito mais amplo de cidadania”, identificado com os “interesses gerais da nação”, devido à “ligação constitutiva com os setores médios” – desempenharia “papel de peso no início do processo de transição para uma economia capitalista”, como porta-voz das “camadas médias” “de populares e escravos e mesmo fazendeiros não escravistas”, de “setores dissidentes das oligarquias.” Proposta em oposição à idéia de inexistência de povo na escravidão, na acepção sociológica do termo, e com uma oficialidade escolhida e educada nos princípios e nas práticas da desigualdade civil e racial, normas comportamentais e funcionais das forças armadas imperiais, que contribuiriam para o caráter elitista e autoritário da república brasileira. Fenômeno que ensejou, como assinalado, a referida quase absoluta ausência de descrições sobre as tropas das narrativas memorialistas.
Em rápida abordagem do desempenho real das forças armadas imperiais, descontrói a sua própria proposta de exército como expressão de vontade nacional, devido à forte concorrência da classe média ao oficialato, ao descrever tropas mal transportadas, mal alojadas, mal vestidas, habituadas ao roubo de oficiais e ao saque de militares e civis inimigos, não raro para poderem se alimentar. Tropas apáticas e em permanente processo de defecção, mantidas na disciplina por constantes e cruéis castigos físicos, tratados duramente pela oficialidade, à qual respondiam não raro com atos de sangue.
Um caráter não-nacional e não-cidadão dos exércitos imperiais que se expressou na recomendação de Caxias de manter os soldos dos oficiais em dia, para que fizessem frente às necessidades, e os dos soldados, atrasados três meses, para que não desertassem, já que com as algibeiras cheias, e para economizar os salários dos mortos por doença e combate! André Rebouças, arrolado de maio de 1865 a junho de 1866 como engenheiro-militar, registra oficiais comandantes com três meses, oficias de tropa com até seis meses e soldados com um ano de soldos atrasados!
Assinalando a profunda distinção de classe nas forças armadas imperiais, o jovem Alfredo Taunay lembrava que, já no final da campanha, para alimentar-se bem, associara-se a um pequeno grupo de oficiais, formado sobretudo por rio-grandenses, contribuindo para o rancho, preparado por subalterno, “excelente cozinheiro”, com “cota mensal” de 7 a 12 livras esterlinas!
Tropas imperiais que, segundo o próprio Caxias, não sofrendo a “influência moral” dos oficiais, deviam ser tratadas duramente, sobretudo durante os combates, quando sua “indisciplina” e “tibieza” causavam perdas de “oficiais prestimosos, cheios de inteligência e de coragem”. Caráter não-nacional que se materializava igualmente na oposição social, mesmo violenta, entre inferiores a superiores, como os três atentados à oficiais, em apenas oito dias, no acampamento de Tuiuti, registrados por Caxias.
Restauração Historiográfica
Em fins de 1990, com a consolidação do movimento geral de restauração historiográfica no Brasil, impulsionada pela mídia; programas de pós-graduação; agências financiadoras; grandes editoras, etc., criavam-se as condições ideais para a concretização desse processo quanto à Guerra do Paraguai, de singular importância, devido o caráter central daqueles fatos para a ideologia de Estado e ao sucesso de público de Genocídio americano: a Guerra do Paraguai, de J. J. Chiavenatto.
Em 1991, Francisco Doratioto publicou estudo de divulgação, pela Editora Brasiliense – A guerra do Paraguai: 2ª visão – e, em 1996, ensaio mais alentado na Editora Ática – O conflito com o Paraguai: a grande guerra do Brasil. Os trabalhos, que empreendiam a crítica da produção de Chiavenatto e, secundariamente, de León Pomer, registram a influência da literatura revisionista. A qualidade dos trabalhos poria o autor no centro do movimento restauracionista no Brasil.
Analisaremos a segunda obra, que retoma e amplia teses defendidas na primeira. Doratioto reduz o revisionismo praticamente à visão da responsabilidade do “imperialismo inglês”, proposta inexistente no trabalho Il Napoleone del Prata. Propõe que os revisionistas, pautados “pelo emocionalismo e por motivações ideológicas”, teriam construído “novos mitos” que superaria em obra isenta de ideologia, pois apoiada nas fontes histórica. Para o autor, o revisionismo restringia-se praticamente a Chiavenatto e a Pomer.
O conflito com o Paraguai abre-se com a afirmação paradoxal de que o “Império demonstrou [no Paraguai] sua capacidade de travar uma guerra com características inéditas que o obrigaram a mobilizar recursos humanos e materiais em larga escala”. Retoma a proposta de Salles da modernidade das forças armadas paridas no confronto: “Foi o Exército, que o Estado imperial estruturara durante a guerra do Paraguai em padrões modernos de organização e armamento, o instrumento que pôs fim a Monarquia [...].”
No segundo capítulo, empreende apresentação das disputas do Plata anteriores ao confronto, sem referência efetiva ao amplo papel desempenhado da oligarquia portenha no conflito, no contexto de permanente absolvição-relativização das responsabilidades do Estado imperial, em geral através da ignorância de questões fundamentais, como a disposição do Brasil em entrar em guerra com o Paraguai, muito anterior ao conflito, e a garantia da independência uruguaia por aquele país, tido como casus belli, já que dela dependia a autonomia econômica paraguai.
A Guerra do Mate
O autor utiliza igualmente recursos narrativos para elidir contradições históricas, como a referência neutra à “queda de Rosas”, sem registro da também participação do Império, ou a pasteurização textual das responsabilidades imperiais na intervenção no Uruguai, em 1864, com apoio da oligarquia portenha. “O governo argentino, que rompera relações diplomáticas com o Uruguai, reconheceu o direito [sic] de o Império agir contra esse país, sempre respeitando [sic] a integridade territorial [sic] e a independência uruguaias. [sic]”
Destaca-se no trabalho a sugestão do conflito como devido à razão econômica de indiscutível simplicidade – a disputa entre o Brasil e o Paraguai pelo controle da erva-mate. “Para obter mais recursos, o Paraguai teria, portanto, de vender mais erva-mate na região e só poderia fazê-lo à custa do Brasil [...]. Registre-se que o território disputado entre o Império brasileiro e o Paraguai era produtor de erva-mate.” Idéia que o autor nuançaria, em seu trabalho de 2004.
A abordagem telegráfica da sociedade paraguaia e semi-ignorância do caráter das sociedades brasileira, uruguaia e argentina sinalizam a retomada substancial de análise político-factual, de “trincheira”, desde a ótica das classes dominantes imperiais, da historiografia nacional-patriótica. A própria decisão de Pedro II de prosseguir a hecatombe é elogiada: “Foi a persistência [sic] do imperador, no crítico ano de 1868, em favor do prosseguimento da luta [sic] que abortou qualquer discussão sobre seu fim que não fosse pela vitória militar.”
Ainda que matizada, retoma-se a diabolização tradicional do inimigo: “[...] o navio de guerra paraguaio Iporá, [...] tinha ‘à vista do público, uma corda contendo grande quantidade de orelhas humanas, postas a secar, que pertenciam aos infelizes tripulantes da [canhoneira] Anhambaí.” Afirma-se sobre o combate de 3 de novembro de 1867: “A soldadesca [sic] paraguaia, em lugar de continuar a combater, entregou-se ao saque [...].” A tropa imperial, salvo engano, não recebe jamais tal tratamento.
Embrenhado nas contradições da historiografia nacional-patriótica, para explicar a tibieza das tropas imperiais, que reconhece numerosas e bem armadas, retoma os argumentos tradicionais da falta de preparo inicial dos exércitos; de conflitos políticos internos; das “peculiaridades do conflito”, etc., como se esses handicaps negativos contassem apenas para as tropas imperiais.
Pequeno e Mal Armado
Sobre a invasão do Rio Grande, afirma: “[...] o Exército brasileiro [em senso estrito] era pequeno e mal armado, contando com no máximo dezoito mil soldados com moral baixo [...].” “Durante a guerra do Paraguai não houve trégua na encarniçada luta política” entre liberais históricos, liberais progressistas e conservadores. “Compreende-se [...] a facilidade com que as forças paraguaias avançaram em território brasileiro”. Esquece que apenas o Rio Grande tinha população maior do que a assinalada para o Paraguai, superando os 430 mil habitantes, em 1872.
A inoperância da Armada deveria-se ao fato de seus navios terem “dificuldades para manobrar em vias fluviais” e às “desconfianças de Tamandaré para com o aliado argentino”. A passividade do almirante nasceria também de sua “idade avançada”, apesar de não ter ainda 57 anos ao assumir o comando no Plata, enquanto que, ao entrar em Assunção, Caxias cumpriria os 66 anos! O autor convém que o substituto de Tamandaré, futuro visconde de Inhaúma. não primou também pela decisão, sem explicar tal fato.
Acompanham as justificativas do vexame militar imperial no Plata elogios áulicos dos oficiais maiores. Sobre Osório, lemos: “Seu retorno ao Paraguai teve efeito psicológico positivo sobre o Exército imperial, pois esse general gozava de grande prestígio perante os soldados graças à sua capacidade tática, a coragem e frieza em combate e pela camaradagem com os subalternos.” Não temos porém registro que tal prestígio fogueasse as tropas imperiais no combate aos paraguaios.
Lê-se sobre Caxias na batalha da ponte de Itororó, em 6 de dezembro de 1868: “[...] Caxias, que acompanhava a luta de uma colina, desembainhou a espada e aos gritos de ‘Vivas ao Imperador e ao Brasil’!, lançou-se sobre a ponte, gritando para a tropa que o seguisse, sendo alvejado [sic] pelas balas dos defensores que chegaram a matar seu cavalo. Graças a esse ato temerário, Caxias consegui pôr fim à debandada de seus soldados, que, entusiasmados, retornaram ao ataque e conquistaram a ponte.”
Definitivamente, os elogios áulicos não são extensivos a Solano López: entretanto, se explicarmos a produtividade dos exércitos como conseqüência direta de seus oficiais superiores, posição para nós inaceitável, o paraguaio mereceria o denominativo de “Napoleão do Prata”, ao conseguir resistir com escassas tropas mal-armadas, por tanto tempo, ao enorme esforço militar aliancista!
Retomam-se as explicações da combatividade paraguaia como produto da repressão; atraso nacional; galvanização carismática. “Durante a guerra o governo paraguaio estendia a punição daqueles acusados de falta grave, como tradição, rendição ou deserção, também aos familiares. [...] todo soldado paraguaio era responsável pelo seu companheiro de trincheira [...].” Fatos que transforma a “fidelidade e sacrifícios extremos que caracterizaram os combatentes paraguaios”, além da sua “combatividade”, fenômenos sem explicação.
O Soldado e o Oficial
A incompreensão do baixo desempenho dos soldados e dos oficiais imperiais diante da paradoxal resistência paraguaia, sobretudo quando os soldados guaranis defendiam os territórios nacionais atacados, deve-se à ignorância das determinações tendenciais dos exércitos e de seus comandantes pelas estruturas sociais profundas. A indiscutível genialidade militar Napoleão foi produto de forças militares ensejadas pela França nacional-cidadã parida pela Revolução que alçava ao oficialato seus homens mais capazes.
A surpresa de Taunay com formas paraguaias de combate não enquadradas pela oficialidade era idêntica a dos monarquistas que combatiam os patriotas franceses: “Usavam [...] de uma manobra nova: deitavam-se por traz dos acidentes do terreno e daí nos faziam fogo, deixando ver apenas as cabeças; depois, [...] furtavam-se à nossa vista.” Luta de homens livres impossível de ser utilizada pelos exércitos imperiais e argentinos sob a ameaça permanente da deserção.
Por além da falsa modernidade, as forças armadas imperiais sofreram sempre a determinação de sociedade escravista não-nacional. Realidade registrada na ojeriza de Caxias à tropa formada substancialmente por negros livres, libertos, alforriados, etc., não adaptados a um exército moderno, devido ao caráter não-cidadão e não-nacional do Império, e não à má qualidade racial, como propunha o Barão.
Em correspondência confidencial de 13 de dezembro de 1868, o velho militar, fogueado no combate aos cativos sublevados, lembrava que “todas as vitórias alcançadas, desde que me coube a honra de assumir o Comando do Exército Brasileiro, têm sido em grande parte devidas ao cuidado com que nunca consenti que forças nossas, quer de infantaria, quer de cavalaria se batessem com as do inimigo sem se acharem muito superiores em número.”
Destaque-se no ensaio as interessantes páginas sobre “´O açougue paraguaio”: a impopularidade da guerra”, que retomam a tese revisionista da oposição da população brasileira livre ao confronto, o que impediu a constituição do exército nacional proposto, obrigando o arrolamento coercitivo e a compra de cativos: “Tais desapropriações [sic] eram bem pagas, a ponto de talvez terem apresentado, segundo Sodré, a maior despesa brasileira no conflito.” O ensaio não discute o “Tratado da Tríplice Aliança”, documento secreto, aprovado à margem dos parlamentos, que pactuava, desde o início do conflito, as medidas draconianas assinaladas, favorecendo à resistência nacional sem limites, na procura da reversão de exigências que praticamente puseram fim ao Paraguai como nação independente, por largo tempo, e exauriram profundamente suas forças.
.
130 Anos Depois
Em 23 de novembro de 1994, a Biblioteca Nacional promoveu seminário sobre a Guerra do Paraguai, sob a coordenação do historiador Carlos Guilherme Motta, com a participação do historiador inglês Leslie Bethell; do sociólogo peruano radicado no Brasil Enrique Amayo; do historiador Fernando Novaes; do historiador argentino radicado no Brasil León Pomer; do contra-almirante Max Justo Guedes; do historiador Eduardo Silva; do historiador Francisco Alambert; do advogado e crítico de arte paraguaio Ticio Escobar e de Alberto da Costa e Silva, então embaixador do Brasil em Assunção.
Patrocinado pelo Banco Real e pela Fundação Roberto Marinho [Rede Globo], com introdução especial de Leslie Bethell, o livro Guerra do Paraguai: 130 anos depois reuniu as breves intervenções de destacados intelectuais, sobretudo paulistas e fluminenses, não raro sem pesquisas específicas sobre o tema. O trabalho destacou-se sobretudo pela critica do historiador inglês à tese da influência do imperialismo britânico no conflito, não raro retomada como palavra definitiva sobre a polêmica historiográfica. Destaca-se no livro alentada “Bibliografia da Guerra do Paraguai”, com trabalhos depositados na Biblioteca Nacional.
Na introdução “A guerra do Paraguai: história e historiografia”, profundamente simpática à “Tríplice Aliança”, Leslie Bethell apresenta a guerra como decisão de Solano López – “erro que traria conseqüências trágicas para o povo uruguaio” –, motivada por razões entre as quais o eventual impulso de “personalidade megalomaníaca” com o objetiva de realizar o “sonho de construir um império”. Assinala igualmente a “pouca atenção por parte dos historiadores” que o conflito conhecia naquele então, não apenas no Brasil.
No texto “O imperialismo britânico e a Guerra do Paraguai”, questiona a tese da responsabilidade direta e indireta do imperialismo britânico, que lembra ser perfilhada, no geral ou no particular, por autores como Eric Hobsbawm, André Gunder Frank [1929-2005], Leon Pomer, José Alfredo Peñalba, etc. Registra enorme admiração pela hegemonia mundial do capitalismo britânico no século 19; questiona a determinação mesmo “informal” da política sul-americana pelo imperialismo; sugere as vantagens advindas do relacionamento dos latino-americanos com os súditos da Rainha.
Quando à questão em análise, destaca a importância do Brasil e da Argentina para os interesses do capitalismo britânico na América Latina e a pouca relevância do Paraguai, certamente em parte devido à especificidade daquela nação, da Independência até a Guerra, ou seja, de política estatal de controle público das terras e do comércio exterior. Assinala o interesse britânico na “unidade política” da Argentina, ou seja, apoio à oligarquia portenha e a sua política, e na “manutenção da livre navegação nos principais rios da região”.
Progresso & Civilização
Bethell lembra a posição “acentuada e abertamente antiparaguaia” de sir Eduard Thornton (1817–1906) , representante diplomático inglês no Plata, que acompanhou as confabulações contra o governo uruguaio “blanco” e defendeu diante da representação paraguaia o direito de interferência armada do Império no Uruguai. Reconhece que Thornton, como “também a maioria das autoridades britânicas apoiavam os Aliados”, pois viam “de modo crítico o regime de López”, considerando, “em última análise”, a Guerra como incentivadora do “progresso e civilização contra retrocesso e barbárie”. Ou seja, domínio pleno do liberalismo livre-cambista na região, ao igual do que já ocorria no Brasil e na Província de Buenos Aires.
Destaca os importantes empréstimos concedidos à Argentina mitrista e ao Brasil imperial para financiarem a Guerra e o abastecimento permanente dos exércitos da Aliança em navios, canhões, munições, armas, etc., que justifica a partir da estranha idéia de que o capital não se preocupa com a política quando pode lucrar. Aceita que a “Grã-Bretanha praticamente não fez qualquer tentativa de mediação” para finalizar com o conflito, mesmo tendo López proposto explicitamente conceder parte dos territórios reivindicados em troca da paz.
Os dados e as reflexões do historiador inglês corroboram a tese de que, mesmo não sendo a Guerra política incentivada diretamente pelo governo inglês, o ataque dos governos do Império e da Argentina unitarista contou sempre com a simpatia e com o apoio dos interesses britânicos. Primeiro, por “desaferrolhar” região de ordem “barbárica” anti-liberal, que dificultava o “livre comércio”. Segundo, devido os enormes negócios que assegurou ao capital britânico, certamente o grande vitorioso nesse conflito.
Leslie Bethell conclui sua vigorosa defesa do imperialismo em afirmação que fusiona simploriamente governos e populações nas suas respectivas nações, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, apresentando-as como os únicos responsáveis, ontem e hoje, pela hecatombe: “A Grã-Bretanha – e as suas supostas [sic] ambições imperialista – não podem mais ser utilizada como bode expiatório para a Guerra do Paraguai. A responsabilidade primordial dessa guerra cabe à Argentina, ao Brasil e, em escala menor, ao Uruguai e, naturalmente, ao próprio Paraguai. A Guerra do Paraguai foi uma guerra civil [sic] regional, muito embora com uma dimensão internacional muito interessante e digna de nota [sic].”
Hiato Sem Repercussão
Em 1995, o historiador mato-grossense Jorge Luiz Prata de Sousa defendeu na Universidade Nacional Autónoma de México dissertação de mestrado versando sobre o “mito brasileiro sobre os voluntários da pátria”, publicada em 1996. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai constitui trabalho revisionista extemporâneo, de alto nível acadêmico. Após argutas páginas de crítica da historiografia nacional-patriótica posterior à guerra e à República, destaca a importância das apologias sobre o “voluntariado” na construção das narrativas do Exército como expressão da nacionalidade.
Apologias como as de Paulo de Queiroz Duarte, em Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai: “E o apelo do Imperador, endereçado ao voluntariado, teve profunda ressonância na alta de seus súditos [...] o entusiasmo popular extravasou em transportes patrióticos, enchendo as ruas e praças das principais cidades do país de considerável multidão, vibrando de fé na justiça da causa, pronta a cerrar fileiras em torno do Imperador. [...] A causa nacional passou a empolgar a alma do povo [...].”
Narrativas retóricas nacional-patrióticas que praticamente obscureceram o caráter fortemente coercitivo do recrutamento. O autor lembra que foi efetivamente a resistência dos homens livres em se alistarem, apesar das vantagens oferecidas, sob a pressão estatal, que levou à decisão imperial de comprar e incorporar cativos ao Exército e à Armada, como assinalado.
Apoiando-se sobretudo no estudo das cartas de alforria concedidas no Rio de Janeiro, explicita as contradições que dificultaram o arrolamento: a luta dos grandes proprietários pelo controle da mão-de-obra servil; as duras condições de existência e o racismo [“preconceitos sociais”] nas forças armadas; o caráter elitista da Guarda Nacional; o uso político do recrutamento; o alto preço médio dos cativos vendidos ao Estado [quase dois contos de réis]; a deserção sistemática sobretudo dos recrutados e substitutos; o caráter pré-nacional do Estado escravista, etc.
Demonstra igualmente a pouca confiabilidade dos dados gerais administrativos sobre o recrutamento de cativos, sugerindo estudos através do levantamento nacional das cartas de alforrias, com o objetivo de elucidação qualitativa e quantitativa geral desse processo. Em forma geral, Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai foi semi-ignorada, quando da discussão sobre o tema.
A Grande Mídia
Em 9 de novembro de 1997, o caderno Mais, da Folha de São Paulo, ressaltava a necessidade do restauracionismo historiográfico sobre a Guerra contra o Paraguai em artigos coordenados por R. Bonalume Neto – “Novas lições do Paraguai”. A operação jornalística escancarava o viés ideológico em sua chamada: “Historiadores revêem a tese de que o país de Solano López teria sido uma Cuba [Sic] do século 19 derrotada pela aliança militar do Brasil com a Argentina e o Uruguai [sic].” A matéria, afirmava que o Brasil teria conhecido “rolo compressor ideológico [sic] nos últimos anos do regime [sic] de 64, principalmente graças a dois best sellers desse nacional-populismo revisionista, As veias abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano, [...], e Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai”, de J.J. Chiavenatto.
Nesse então, os principais trabalhos acadêmicos restauracionistas eram o livro de Ricardo Salles e sobretudo os dois ensaios de Doratioto, obras sintéticas de escasso alcance de público. Assinaram os artigos encomendados José Murilo de Carvalho e Pedro Paulo Soares; André Amaral de Toral; Francisco Doratioto; Guido Rodríguez Alcalá; Marco Antônio Villa e, prova de pluralismo da iniciativa, León Pomer, que tentava explicar, mais uma vez, o sentido de sua proposta sobre o imperialismo na Grande Guerra Sul-Americana.
Salvo engano, a intervenção da grande imprensa na orientação ideológica da historiografia brasileira não foi ainda estudada. Essas publicações, com centenas de milhares de exemplares, possuem enorme poder de legitimação-deslegitimação da produção cultural. A historiadora sul-matogrossense Ana Paula Squinelo registrou a influência direta daqueles artigos na sua posterior decisão de abordar a Guerra, em dissertação de mestrado de cunho restauracionista, de 2001.
Em A guerra do Paraguai, essa desconhecida: ensino, memória e história de um conflito secular, essa autora propõe três períodos para a historiografia nacional sobre a Guerra, não explicando a origem dos mesmos: um primeiro, dos anos 1920 a 1960, de visão “patriótica”, como nas obras do general Augusto Tasso Fragoso [1869-1945] e José Francisco da Rocha Pombo [1857-1933]; um segundo, desde 1960, de “visão ´imperialista´ do litígio, com destaque para Chiavenatto e Pomer e, finalmente, um terceiro, a partir de 1980, de estudos “inovadores e menos tendenciosos [sic]”.
O interessante trabalho sintetiza a incapacidade restauracionista de superar as contradições apontadas pela análise de literatura que a autora investiga, até então pouco utilizada, com destaque para a produção paraguaia. Sem empreender sínteses explicativas, Ana Squinelo limita-se quase à apresentação das diversas narrativas, lado a lado, ou à corroboração da tese da guerra como devida à formação das nações do Plata, que enseja a absolvição geral de responsabilidades. Critica fortemente às apresentações revisionistas esquemáticas e simplistas dos livros didáticos, sem propor superação para a esse literatura, a não ser sugestões como a superação das narrativas áulica sobre os “grandes homens” pela agregação do estudo das “pessoas simples” no conflito.
Em 2000, sob o patrocínio do Instituo Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, o engenheiro-agrônomo Acyr Vaz Guimarães [1919-2005], sócio-correspondente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, publicou A guerra do Paraguai: verdades e mentiras, trabalho pára-historiográfico, no qual, “em 214 pontos”, propõe-se a desmentir Chiavenatto, com destaque para a já tradicional comprovação da não participação inglesa no confronto. O livro retoma e potencia as grandes propostas da historiografia nacional-patriótico e registra a visão da alta oficialidade do Exército brasileiro da luta contra o revisionismo sobre a Guerra como parte do combate ao “comunismo” no Brasil.
Vinte e Cinco Anos Mais Tarde
Em 2002 e 2004, foram publicados dois ambiciosos trabalhos gerais restauracionistas, de diversa qualidade e repercussão. Em 2004, o coronel do Exército Maya Pedrosa, que viveu no Paraguai, publicou A catástrofe dos erros: razões e emoções na Guerra contra o Paraguai, na coleção Biblioteca do Exército, que dirigira, resposta explícita às “apreciações pessimistas e iconoclastas” marxistas “sobre o passado nacional, marcando o desprestígio de seus estadistas, diplomatas, soldados e do povo brasileiro que foi lutar na guerra”.
Na “Introdução”, o oficial registra a enorme admiração pelo livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai, do historiador Francisco Doratioto, lançado dois anos antes. Reconhece que, após aquele trabalho, “continuar em frente [com seu livro] talvez” fosse “temerário. Não apenas devido ao limite desse ensaio, analisamos Maldita guerra, já que segue linhas gerais concorrentes ao de Maya Pedrosa, em um elevado nível de qualidade, excelência e erudição, que o qualificou como obra paradigmático do restauro historiográfico sobre o conflito, finalmente plenamente consolidado.
Esse extenso trabalho, de quase quinhentas páginas de texto, publicado ricamente pela prestigiosa Companhia da Letras, como nos trabalhos anteriores, critica em forma explícita o revisionismo paraguaio, brasileiro e latino-americano, propondo realizar nova e mais equilibrada leitura dos fatos. Uma intimidade do autor nascida de uma década de pesquisa explicita-se na valiosa revisão bibliográfica e documental, que o torna obra referência e imprescindível ao estudo da questão. Entretanto, o autor não cita e não discute trabalhos referencias da produção marxista argentina sobre a Guerra como os de Milciades Peña e Enrique Rivera, já citados.
Uma das singularidades do conflito no Plata fora antepor três nações – Argentina, Brasil e Paraguai – que conheciam formações sociais diversas, realidade já intuída por analistas coevos mais sensíveis. A historiografia revisionista avançara o conhecimento histórico sobre a Grande Guerra ao propor a necessidade da elucidação do caráter das sociedades em luta, em geral, e do Paraguai, em especial, desenvolvendo tal proposta, em forma bastante substancial, sobretudo no relativo à Argentina.
Unidade Social e Nacional
Nos anos 1860, a Argentina, tencionada fortemente pelas contradições entre a oligarquia bonaerense e as províncias, conhecia diversas relações de trabalho livre e preparava-se para empreender a “Guerra do Deserto” [1878-79], contra a população nativa. No Brasil, vigia a produção escravista e outras relações sociais de produção subordinadas − colonos-camponeses, pequenos plantadores, caboclos, nativos, etc. Ambos países assentavam-se na propriedade privada dos meios de produção, em sociedade de cunho largamente liberal. Seguindo os autores revisionistas, Doratioto propõe que o "Estado guarani" era "dono" [sic] "de quase 90% do território nacional", controlando uns "80% do comércio interno e externo".
Em minuciosa análise política, diplomática e militar dos sucessos, em clara regressão em relação ao revisionismo, não contextualiza as sociedades em questão, sobretudo quanto às referidas raízes escravistas do Império e à singularidade da sociedade paraguaia, que permitiu forte acumulação original de capitais pelo Estado e acesso tendencial da população à terra. Apesar de utilizar "país" e "nação guarani" como sinônimos de Paraguai, não aborda as eventuais decorrências da coesão étnico-cultural de população camponesa guarani, com raízes históricas comunitárias e missioneiras, que desbordava as fronteiras nacionais.
A clara homogeneização das nações em luta, liquida a possibilidade da compreensão de elementos fundamentais, como os sugeridos por Salles em relação ao Brasil. O que resulta no uso anacrônico de categorias como "povo", "cidadão", "opinião pública" para a sociedade escravista brasileira, na qual grande parte da população encontrava-se objetiva e subjetivamente à margem de comunidade cidadã que se restringia a uma parcela diminuta da população livre, em geralmente branca – ou tida como tal. Na sua literatura sobre a guerra, Taunay refere-se quase exclusivamente aos oficiais. Em uma das poucas referências mais diretas a subalternos, anota: “Ao nos separarmos no Tacuaral, tive a preocupação diária do rancho que não é pequena em campanha até que se acerte com um camarada que entenda um pouco de lidar com panelas. Sofri e não pouco, já por não ter preparo algum para organizar o meu rancho, já por me haver tocado para camarada um legítimo palerma, medraço e avelhacado, quando não refinado tratante.”
Fanatismo & Repressão
A abordagem essencialmente política impossibilita explicação essencial da belicosidade paraguaia e letargia brasileira. Sem superar essa contradição, radicaliza a explicação da tenacidade guarani apresentada em 1991, como produto da fanatização e de controle policial, em mais uma restauração das visões nacional-patrióticas. "Apesar dessa situação, quase não havia deserção nas fileiras paraguaias, devido ao clima de terror imposto por Solano López, que estendia a punição a familiares e companheiros do desertor. Ademais, proibiu-se aos soldados ou oficiais paraguaios ficarem sós na vanguarda, por temor que desertassem."
Explicação da marcialidade como produto da fanatização e ação policial que contradita com uma nação com Estado, exército e meios de comunicação rústicos e, portanto, propícios à deserção de soldados tiranizados. Tese que não explica a rearticulação permanente da resistência, após as grandes derrotas da Dezembrada, com ênfase na reagrupação nos sertões, após López ter perdido o controle do aparelho estatal. Foram os exércitos brasileiros e argentinos que conheceram deserções permanentes, ininterruptas e relevantes, pululando durante a guerra nos quilombos brasileiros quase mais desertores do que cativos. Anos após a Guerra, Taunay anotava que, em 1869, reinava o desânimo nas tropas imperiais e significativa vontade entre oficiais de encetar negociações de paz, pois ponderavam que “o povo paraguaio tão completamente [identificado] com o seu chefe, seria necessário dar cabo do último homem para alcançar a pessoa do ditador”.
O autor deduz a origem e a evolução do conflito da personalidade de López, sobre quem lança a responsabilidade da guerra, em outra restauração da historiografia imperial e republicana de Estado, apesar de apresentar corretamente o confronto como tendencialmente inevitável, devido à procura da nação guarani de autonomia nacional e a negativa dos governos brasileiro e argentino de concedê-la. Radicalizando tendência presente nos ensaios iniciais, a personalização da história resulta no elogio apologético das lideranças da Tríplice Aliança − Pedro II, Mitre, Caxias, Osório, etc. − e tenaz diabolização de López.
Como na literatura nacional-patriótica, Francisco Solano López é apostrofado como “ditador quase caricato”, “ambicioso”, “tirânico”, “quase desequilibrado”. Desqualificação pessoal extensiva igualmente a Elise Lynch, descrita e tratada como “cortesã de luxo”, ao igual do praticado pelos ideólogos do Império e da Argentina mitrista. E, nesse estrada, o autor, sem peias, identifica Francisco Solano López, em singular modernização, a Hitler, ingênua personificação moderna da violência da sociedade de classes na história. Para tal, propõe como "identidade entre os dois ditadores" o fato de terem, Hitler e López, ambos, usado jovens e velhos em desesperada resistência final que comprometeria seus países. A aproximação é anacrônica e esquece que foram os objetivos e as práticas que desqualificaram o nazismo, e não a resistência inexorável com jovens e velhos armados, utilizada licitamente pela resistência da população soviética e do gueto de Varsóvia contra as forças nazi-fascista.
A retórica desabonadora estende-se às classes dominantes, aos oficias e aos soldados paraguaios, apresentados dedicados sistematicamente ao massacre, ao estupro e ao roubo, ainda que se convenha que, em certos momentos, os aliados procedessem de igual modo. Realidade em confronto com a anotada por Taunay, como assinalado. Sugere que o conflito foi o choque entre o Brasil, nação monárquica, constitucional e liberal – liberalismo considerado qualidade –, e o Paraguai, Estado despótico, autocrático e atrasado, outra tese apologética, durante e após a guerra, como já proposto.
Gigante Acorrentado
Seguindo essa linha de análise, não registra que o Paraguai era país de homens livres, com enorme quantidade de camponeses pequenos proprietários ou com acesso à terra, enquanto o Brasil era fortemente nação de escravizados e escravizadores. Fato essencial para a compreensão da dificuldade do Gigante Acorrentado em estabelecer arrolamento nacional de combatentes, contra o Liliput emancipado, que galvanizou à exaustão sua população no combate. Nesse sentido, não pelas razões em geral assinaladas, o Paraguai era mais avançado socialmente do que o Brasil.
Alberdi lembrava, nesse sentido: “[...] [o povo paraguaio] ha respondido sosteniendo a su gobierno, con más ardor y constancia, a medida que le veía más debilitado y más desarmado de los medios de oprimir, y a medida que veía a su enemigo mas internado en el país y más capaz de proteger la impunidad de toda insurrección. El Paraguay ha probado de eso modo al Brasil que su obediencia no es la del esclavo, sino la del pueblo que quiere ser libre del extranjero.”
O autor não discute a possibilidade da longa duração dos combates dever-se ao confronto desigual entre Estado escravista e nação de homens livres, ameaçada na sua independência, desequilíbrio superado apenas pela abismal desproporção de recursos, em homens e meios, com destaque para a marinha. Determinação dos combates pela essência escravista do Estado brasileiro percebida por Caxias, ainda que não entendida. O velho verdugo de cativos da Balaiada e da Farroupilha referiu-se a essa realidade ao execrar a qualidade militar dos libertos, "homens que não compreendem o que é pátria, sociedade e família, que se consideram ainda escravos, que apenas mudaram de senhor".
Apreciação compartida pelo coronel José Antonio Corrêa da Câmara [1824-1893], segundo visconde de Pelotas, que explicou o fracasso de assalto à posição paraguaia por "nossos soldados de infantaria" serem "os negros mais infames deste mundo, que chegam a ter medo até do inimigo que foge". Esqueciam os oficiais escravistas que os negros pusilânimes, no Paraguai, sob a bandeira escravocrata do Império, foram os mais valorosos soldados de José Artigas [1764-1850], no Uruguai, sob a bandeira da luta pela liberdade e pela terra. Saltando as questões estruturais ao conflito, termina assumindo tom e conteúdo nacional-patriótico, propondo que os verdadeiros “heróis” aliancistas seriam "os [combatentes] que viveram" nas duras condições de Tuiuti, "durante dois anos, sem desertar ou pretextar doença".
Desqualificação inaceitável de atos individuais socialmente positivos de milhares de soldados brasileiros, argentinos e uruguaios que obedeceram o sábio preceito plebeu de que, se "Deus é grande, o mato é maior", escafedendo-se de guerra das classes dominantes, lutada, como sempre, pelos subalternizados, em prol da opressão de povo irmão. Restringido a descrição a uma indiscutivelmente rica e valiosa narrativa política, diplomática e militar, explicando as suas origens e dinâmicas a partir da ação de protagonistas ilustres, o autor jamais se debruça sobre os grandes sujeitos dos acontecimentos estudados, realizando em um enorme hipérbole, restauração da velha historiografia nacional-patriótica.
Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, na sua parcialidade, constitui sobretudo uma narrativa, dos sucessos no Prata de 1864-1870, desde os ponto de vista do Estado nacional brasileiro, ou seja, dos interesses gerais de seus classes dominantes, com um respeito apenas diplomático para o antagonista do Império. Todos os atos e as razões do Império são justificados ou apresentados sob a melhor luz, usando-se para tal fortemente os recursos da narrativa.
Mais do que relatar os fatos, defende o ponto de vista do Império. Tamanha é a identificação nacional nesse relato que, ao contrário, deveria se sobrepor aos apriorismos patrióticos para alçar-se ao nível da historiografia científica, que o autor termina se incluindo entre os segmentos estatais do Império: “A troca de representantes brasileiros no Paraguai, no período pré-guerra, e seu isolamento da sociedade local impediram-nos [sic] de bem conhecer a realidade paraguaia.”
Perpassa a interpretação do conflito visão relativista da história das nações, onde todos os interesses nacionais, igualmente pertinentes, resolvem-se em confrontos estranhos à margem de qualquer moralidade. “Aqui não há ‘bandidos’ ou ‘mocinhos’, como quer o revisionismo infantil, mas sim interesses. A guerra era vista por diferente ópticas: para Solano López era a oportunidade de colocar seu país como potência regional e ter acesso ao mar pelo porto de Montevidéu [...]; para Bartolomé Mitre era a forma de consolidar o Estado centralizado argentino [...]; para os blancos, o apoio militar paraguaio [...] viabilizaria impedir que seus dois vizinhos continuassem a intervir no Uruguai; para o Império, a guerra contra o Paraguai não era esperada [sic], nem desejada [sic], mas iniciada, pensou-se que a vitória brasileira seria rápida e poria fim ao litígio fronteiriço entre os dois países e às ameaças à livre navegação, e permitiria depor Solano López.”
No tribunal da história, onde se julga a partir dos direitos dos povos, há, sim, o certo e o errado, o justo e o injusto. Nos anos 1860, o Paraguai tinha todo o direito de ter garantido o livre acesso ao mar, de ter resolvidas as questões de fronteira por arbitragem e de ter respeitado o seu governo, enquanto o Uruguai possuía, igualmente, o direito de ter sua autonomia nacional intocada pelos poderosos vizinhos e que os criadores rio-grandense respeitassem as leis do país. Ao desobedecerem esses direitos nacionais, o Estado imperial e argentino se comportaram, naquela ocasião, como Estados bandidos, segundo a categoria usada.
IV. Conclusões: Uma História dos Povos Por Ser Escrita
A narrativa memorialista brasileira sobre o grande confronto produziu “narrativas de trincheiras” que teve como grandes protagonistas a oficialidade e as forças militares imperiais na defesa da nação agredida. Na República, essa produção desdobrou-se em estudos de vocação historiográfica que retomaram o ponto de vista do Estado imperial para consolidar proposta do caráter prometéico das elites nacionais, com destaque para a oficialidade, na defesa dos valores da nação.
Durante a Guerra, intelectuais sobretudo argentinos questionaram profundamente as explicações apologéticas do Império e da Argentina mitrista. A partir do início do século passado, revisionismo paraguaio impugnou as teses da historiografia das nações vitoriosas propondo o caráter avançado da nação paraguaia, da agressão promovida pela Inglaterra e pela Tríplice Aliança, elevando Solano López a herói nacional. A partir de 1950, sobretudo na Argentina, historiografia revisionista latino-americanista e marxista, procurou superar a ótica de “trincheira” nacional-patriótica, perseguindo leitura de todo o campo de batalha, desde o ponto de vista dos povos envolvidos no conflito, vítimas de drama que definiu, em alguns casos, como produto da vontade imperialista inglesa.
Surgida à margem das instituições acadêmicas, nos seus avanços e limitações, o revisionismo historiográfico sobre a Guerra do Paraguai, que não retomou plenamente as conquistas da crítica revisionista anterior, expressou as necessidades subjetivas do movimento social sul-americano em ebulição. Sua necessária superação foi frustrada pela dissolução das condições históricas que a haviam gerado, com a vitória da contra-revolução neoliberal de fins dos anos 1980.
No novo contexto, crítica acadêmica e para-acadêmica impugnou sumariamente a revisão empreendida da literatura nacional-patriótica imperial e republicana. A produção revisionista não teve suas contradições superadas, sendo apenas deslegitimada através da crítica sumária da tese do “imperialismo inglês”, de alguns de seus trabalhos, e sobretudo dos lapsos do estudo de J.J. Chiavenatto. Importantes trabalhos revisionistas nacionais e internacionais não foram sequer integrados à discussão, que se centrou em construção caricata daquela rica produção historiográfica.
A mera negação das negações revisionistas da historiografia nacional-patriótica brasileira, pelo restauracionismo, ensejou retorno essencial à “historiografia de trincheira”, expresso na culpabilização de Solano López pelo conflito; nas narrativas preciosistas dos feitos militares, desde a ótica do Estado brasileiro; no elogio aos grandes chefes militares aliancistas; na despreocupação com a análise do caráter das sociedades postas em confronto, importante chave para a compreensão do comportamento dos combatentes imperiais, argentinos e paraguaios, etc.
Impõe-se estudos que elucidem a genealogia da historiografia da guerra do Paraguai, no que se refere às narrativas nacional-patrióticas e, sobretudo, aos trabalhos revisionistas, com destaque para o sentido profundo e para a influência na produção historiográfica da crítica argentina do período da Guerra; do revisionismo paraguaio, do início do século; dos estudos argentinos dos anos 1950.
Impõe-se, sobretudo, estudos que desvelem, do ponto de vista dos povos, os objetivos essenciais da ação dos governos das nações envolvidas no confronto. Que elucidem a natureza do Estado paraguaio e os processos de acumulação por ele ensejado, através do controle público das terras e do comércio exterior. Que expliquem as razões e os sentidos da adesão da população paraguaia a Solano López, sobretudo na defesa dos territórios nacionais invadidos. Que apresente leitura dos acontecimentos que supere a visão da ação das massas a partir da intervenção, positiva ou negativa, de personagens providenciais, explicando, ao contrário, as características individuais dos líderes [carisma; inovação; indecisão, etc.] a partir das forças e interesses sociais profundos.
A análise estrutural das condições de vida, objetivos e aspirações das classes populares e escravizadas brasileiras, associada ao estudo da realidade que conheceram sob as forças armadas imperiais, contribuirá também para que finalmente se revele segredos que as narrativas nacional-patrióticas, tradicionais ou restauradas, teimam em esconder, como a defecção de fato das tropas imperiais com o sucesso dos combates, devido ao estranhamento com os objetivos da guerra.
Impõe-se igualmente elucidação da extensão da espoliação a que o nação paraguaia foi submetida, diretamente, quando e após a ocupação militar brasileira, ao ter sua população dizimada; ao pagar dívida militar para o Brasil até 1943; ao perder “as terras em litígio” com o Brasil, “na fronteira com Mato Grosso” e importante porção do “Chaco ocidental para a Argentina”, permanecendo sob semi-tutela do Estado brasileiro por muito longos anos.
(*) Mário Maestri, 60, é professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS. E-mail: maestri@via-rs.net
Presentado en:
Encuentro Anual del CEL.
“La Guerra del Paraguay: historiografías, representaciones, contextos”.
Buenos Aires – 3 de novembro de 2008
Mesa Historiografia:
Francisco Doratioto (Instituto Río Branco); Mario Maestri (PPGH - UPF); Laura Reali (U. Paris VII)